domingo, 23 de setembro de 2007

XXVI


mabel lê horóscopos de jornal obssessivamente, junto com seu primeiro café, bem cedo. é um dentre seus muitos oráculos. ainda que ele risse da incoerência dela em acreditar naquelas quatro frases, naquela manhã leu em voz alta o que estava escrito para o signo dele:
"data estelar:o sol entrou em libra, começou a primavera aqui no hemisfério sul. você começa a caminhar hoje no tempo que antecede seu aniversário, seu inferno astral. o sol, no signo anterior ao seu, cumpre a promessa de criar mais equilíbrio em sua vida - te deixa contemplar belezas esquecidas e abandonar penas de amores passados. recolha suas armas, prefira descansar e despreocupar-se a continuar no fragor da luta. sua alma precisa recuar e sossegar minimamente, o que só se dará em longos momentos de ócio e silêncio".
despediu-se dele, desejando-lhe a visão das flores do cerrado.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

XXV

seu último caderno precisava ser dedicado a ele. ou chamar-se lar. não tomou nehuma das providências. escreveu-lhe uma carta com uma frase de granito, a que ele sonoramente respondeu: é certo que, sendo você a escrever, tinha de ser sobre o corpo, os corpos, um gozo. sim, devolveu-lhe, tudo era sobre isso, ela aprendera. o sexo ele próprio, o dinheiro, o amor desfeito, os casamentos. ah sim, claro, os casamentos. por muito tempo fotografava ao acaso noivas saindo de igrejas, ria consigo da terrível coincidência, era sempre em suas viagens de férias. agora se deparava com vestígios: da antena do carro à porta do prédio, pendiam uma flor e uma fita brancas. sim, mais cedo aquele carro levara os noivos. agora, ao crepúsculo, quem sabe se amavam, matavam vontades. quem sabe se amariam para sempre. quem sabe sofreriam por seus rituais quando arruínados.
ela sentiu um arrepio: era, por certo, um outro pedaço da vida, dele, dela, senão dos dois. apertou a mão dele enquanto caminhavam. era-lhe mais reconfortante espiar os vestígios do amor que testemunhar sua cerimônia. na luz branca da manhã seguinte, estrada do interior, cruzaram um rolls royce velho e seu motorista vestido a caráter - ia conduzir outra noiva. não, ela pensou, ele talvez não tenha se dado conta de que naquela viagem gravava na retina e em outros filmes, não numa fotografia, mais acasalamentos. sentiu sua mão, tão suave. pensou em dizer-lhe que suspeitava haver terminado, para ele, o alento das cerimônias. era mesmo o vento quente do amor vindouro, ainda ávido por entregar-se até o final, que soprava por ali. mas até então não foi capaz de fazê-lo. seu último caderno precisava ser dedicado a ele.

XXIV

lágrimas quentes, ausentes há algum tempo. olá, onde estavam? agradeceu pela trégua, recitou sua oração mais sincera, cinco vértebras deslocadas, era por isso então que doía tanto, e de mais de uma dor. nunca sente medo quando acolhe a solidão de volta na sua vida, seu solo é feito dela. mas dessa vez deseja tanto o direito de tudo viver junto, de se deixar ficar, de não precisar decidir por frases silenciosas. deseja apenas, com fervor.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

XXIII

um dia de manhã, olhando nova york à distância e do alto, mabel soube que era hora de voltar para casa, talvez olhar-se em outros espelhos. e, como dissera aquela velha senhora sempre a seu lado no jantar de gala ao qual obrigava-se a ir em cada começo de outono e primavera: be brave, my dear, be brave. it´s simply time to face the music.




William Morris, La belle Iseult
Oil on canvas,support: 718 x 502 mm
This is Morris's only completed oil painting.