quinta-feira, 24 de maio de 2007

XI

molly não tem muitos amigos mas se orgulha de todos que tem, pois eles a fazem sorrir, dar longos abraços, e como dizia sua mãe, "você desliza repetidamente as mãos pelas costas de quem gosta quando abraça", ao que mabel respondia a cada vez: é um afago que esquenta, mãe. nada; molly o faz para retribuir o mesmo tanto que eles, sim, aquecem-lhe o coração. é assim , por exemplo, com c.f., o amigo a quem hoje deve mandar um recado - e até parece que ele mora em katmandu, e não a quatro ou cinco cidades de onde vive mabel - dizendo: que lindo, c.f.

X

quem começava os motins no século XVIII era, com bastante frequência, as mulheres. mas não adianta procurar nessa fúria intenções políticas manifestas e articuladas. se assim fosse, ela perderia seu sangue em ebulição. o motim de uma mulher é quase sempre um motim da fome. mabel estava cansada de saber que isso sequer requeria um alto grau de organização. foi olhar as fotos das esculturas de bourgeois, que isso lhe fazia esquecer das horas.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

IX

abriu os olhos no escuro, protegida pelos números alaranjados do relógio. era seu quarto, sua vida e nada fora do lugar, nenhum engano. terminara de ler uma história desconcertante, e sentiu o vento, a delicadeza e medo, esses ingredientes noturnos das perguntas que vinham tomar sua vida. não, por favor, não me façam partir daqui- só preciso de um espelho convexo, e não consigo dormir. as janelas da sua casa têm frestas que não contém o vento. às vezes ele sopra suave, noutras ganha velocidade e a faz levantar mais cedo, ainda mais. não faz mais diferença se ela dorme ou não, têm sido assim nas noites que passa só. molly se lembrou da frase no livro que dizia que um amor é destino. pensou que um amor verdadeiro deixa cicatrizes - nas costas, nos móveis, os livros que chegam por mãos insuspeitas, uma rudeza amarga e o chão que foge sob os pés. chorou algumas vezes durante o dia um choro que não era por si ou por eles dois, afinal de contas. ou era, irremediavelmente?

domingo, 20 de maio de 2007

VIII

mabel recebera a carta de c.f., adorava quando ele escrevia. concordava com ele sobre o ímpeto dos homens, também com o que ele não escrevera sobre a timidez dada como certa das mulheres. pedra e seda, a duração improvável que esgarça antes do atrito terminar.
esta linha nitidamente demarcada, mais intuída que descrita por c.f., era a do decoro, a aparência de pureza que tanto protege as figuras convencionais de um casal ou de um par à espera do futuro. ou daqueles longos casos de amor, cheios de abreviaturas secretas, mensageiros aliciados de confiança, excursões prediletas, ausências que são terríveis e datas clandestinas memoráveis.
crédula do amor que parece alucinação, mesmo a si mabel parece excessivamente sentimental, banal, e entretanto respeita por demais a liberdade que a expressão dos sentimentos aquosos lhe concede - a uma mulher é inevitável, os homens disfarçam melhor esse impulso absurdo para dramatizar toda emoção, essa predileção por gestos efusivos.
ela chama a si própria e a outras manifestações da vida feminina tantas vezes mulherzinha pois gosta do tamanho do cotidiano que se deixa compreender somente no diminutivo. exatamente ali onde a inocência sempre foi algo relativamente elástico.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

VII

molly amanheceu sabendo que o veria, esse era um daqueles dias em que ia se sentir muito triste e precisaria esquecer que a comunicação humana existe. telefones são inúteis, nunca mais ia usá-los. mas era sempre nesses dias que acontecia, ela não podia evitar e ele também não, mesmo que nenhum dos dois quisesse assim ou soubesse por que acontecia desse jeito. assistiu às aulas em francês para matar a saudade do acento, pensou se ia mudar de cidade e esperou que ele respondesse. era companheiros de solidão, era só isso. ele acertava os dias, ela se apoiava nele como numa promessa. ele sentia seu cheiro, ainda que a milhas de distância, era isso o que lhe bastava. imaginou-o sozinho como sempre, quis estar lá para dar boa noite e o mandar para casa. ele não entende alemão direito, não vai compreender o que o segurança ou o porteiro disserem quando o mandarem fechar o laboratório, terminar seu serão, deixar o andar, tirar seu uniforme. molly imaginou seus olhos grandes e perdidos. sentiu saudade. e estava só.

VI

mabel se sentia à vontade na classe média do século XXI, considerada a maioria dos seus aspectos. não inteiramente, claro, que esse advérbio não frequenta seus relatos, à exceção talvez daqueles em que se entrega, sua ansiedade imoderada, sua sensualidade áspera. ao contrário de suas certezas sociais, mabel tinha certezas morais que cediam à pressão exercida por sua experiência erótica. era uma mulher totalmente convencional: monótona, monocórdica. por mais sincera que fosse sua pose independente, pressupondo que isso exista - uma pose sincera -, não tinha impulso algum para desafiar a vida que aprendera na casa de seus pais. mas suspeitava: que o mundo era imenso, que em outros lugares havia neve ou árvores altíssimas; que havia, sob uma luz brilhante, uma paisagem de areia em outros tantos. tinha dez anos quando tornou-se uma mulher sem lugar; não desejava outra vida, desejava um outro espaço, sempre outro, para mais adiante, sempre lá, onde pudesse (suspeitava) viver a mesma vida.

V

décimo-segundo andar, avenida do parque. por trás do brise-soleil verde (ou azul)-piscina, a luz mudou da madrugada pro dia ensolarado. molly se pergunta ainda por quantas vezes virá ali, ela que gosta de obstáculos e de não dormir uma noite inteira. uma vez se casara, e no caminho para a cerimônia todas as ruas estavam fechadas, feito paisagem de sonho. molly nem se preocupou, tão desarmada estava, e tão feliz pelo imenso bouquet de flores que receberia mais tarde. cada desaviso tem um preço, e ela viu-se muito tempo depois sozinha de uma solidão palpável, daquelas que você só suporta colocando uma música alta no rádio do carro enquanto dirige por longos quilômetros em linha reta, imaginando frases inteiras pra nunca dizer a quem não te ama mais, mas você insiste e sabe bem por quê. um dia molly contou a uma professora, a quem não via muitas vezes num ano, mas sim, qundo se encontravam eram encontros repletos de amizade, que gostava de se casar decerto porque era uma mulher conservadora. ao que a professora respondeu: não, mabel, um casamento é também uma utopia.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

IV

havia uma escada sempre iluminada, fosse dia ou noite, num prédio à esquerda da rua em que subiam a cada vez que ela ia, ressabiada, acompanhá-lo até a casa. devia a ele a espera, o silêncio, devia.
ele deixou-a rapidamente, a cabeça entre os ombros, ela dizendo palavras para dentro de si enquanto devorava a imagem das suas costas se afastando. sentia saudade dele logo um segundo depois de cada vez que o via à distância. queria escrever-lhe cartas tão delicadas em que dissesse que sim, gostava nele dos menores cuidados, andar de mãos dadas.
não, não me deixe à deriva que assim posso ir embora, e sem que você note - morreríamos os dois dessa vez, não há duas primaveras num mesmo ano.
mabel loomis, a que escreve diários, aprendera a sofrer e sabia que ainda o mais atroz dos sofrimentos terminava. algo nela dizia que era felicidade,não importava o quanto aquilo lhe enganasse com seus mergulhos doloridos, suas faces de assombro. havia uma escada, o lance ascendente, um corrimão de ferro pintado em branco; o telhado solto na beira, um amor incondicional, ela o sabia. podia esperar milênios.

terça-feira, 8 de maio de 2007

III

molly se espanta com facilidade. mas nunca tanto quanto descobriu que mulheres são o sintoma do mundo e por isso os consultórios de psicanálise estão repletos de nós. molly comparece religiosamente às suas sessões vespertinas, vai e volta andando vagarosamente, odeia que haja um elevador à saída, ela gostaria de ter que caminhar por um caminho longo e horizontal, tão logo se despedisse de seu médico. com ele molly aprendeu a respeitar o inconsciente: gosta de chamá-lo médico não pela perspectiva da cura, mas por que o que se passou consigo mesma foi uma intervenção cirúrgica, algo perto de uma cesariana, um bisturi atravessando sua pele e desenhando mapas como cicatrizes do que é ser uma mulher. uma vez, ao terminar um livro que escrevia, molly agradeceu ao seu psicanalista: com minha gratidão mais íntima, por insistir em que aquilo de que não se pode falar, é preciso dizê-lo.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

II

chegou o dia em que experimentaria começar e terminar por canções que falavam de corações devastados e filmes açucarados.
ela sempre soube que não viveria sem, por isso não lhe causava qualquer assombro a íntima delicadeza.
por vezes, doía uma dor aguda quando o olhava, mas isso era o terrível na beleza, pensava molly, ou quem sabe sua própria intensidade mal-contida.
tanta proximidade ressoava por longos segundos em algum lugar sem identificação no seu corpo.
não, não podia olhá-lo sem ferir a si mesma com seus olhos ardendo... seu olhar reverso, de novo sobre si, a cada vez que o punha em movimento.
queria.
protect me from what i want.
provar um amor eterno.
provou um amor eterno.

molly e seus amores

ela tinha três diários, um intimíssimo que lia no escuro do quarto, um a que se dedicava toda segunda-feira à tarde e o terceiro, de capa preta, em que anotava tudo, tudo, hora a hora dos dias, desenhava com tinta nanquim de muitos tons, e depois escolhia os detalhes que narrava às amigas com quem saía religiosamente pra jantar no início das noites de domingo. foi se dividindo entre eles, em cada um escrevia um tipo de assunto, até o dia em que percebeu que era uma personagem em busca de um nome. molly era o seu nome verdadeiro mas ela queria ter sido chamada por outros sons. assim parecia que ela era título de romance barato - desses de banca de revista, de amores oitocentistas, em que tem sempre um cara e uma menina derretidos um com o outro, que custam dois reais e se chamam júlia, sabrina, rebeca, bianca, e que você lia escondido da sua mãe quando tinha onze anos de idade.
certa vez molly ouviu a seguinte conversa na mesa ao lado - ela jamais evita escutar as falas alheias:
- não sei o que você viu nela. ela é uma mulher comum.
- ela tem o olhar de desejo.nada comum.
molly se lembrou de quantas vezes na vida lamentou não despertar nos homens todos um olhar de fogo. sabia que nunca os tinha deixado ver o que lhe faltava, seu despudor; ela própria tão aflita por alguém que a achasse pronta, leve e suave.