sexta-feira, 26 de outubro de 2007

XXVIII

as mulheres sem vocação para serem amantes.
há muito mabel leu num livro de duras: "deve ter sido por muito tempo a soberana do seu desejo, a referência pessoal da sua emoção, da intensidade da ternura, da sombria e terrível profundeza da carne... desde que ele se apaixonou loucamente pelo seu corpo, a menina não sofria mais por tê-lo... como se também tivesse descoberto que esse corpo era afinal plausível, aceitável, tanto quanto outro qualquer".
não soube àquele momento o quanto eram palavras proféticas, uma condição em que ela então imaginava ajustar-se, mas logo se viu incapaz.
por mais um longo tempo mabel não pode evitar torturar-se por carregar aquele corpo, um corpo de mulher que silenciosamente pedia desculpas por existir. em tantas vezes olhou as pessoas e prescrutava-lhes o olhar para encontrar a condenação, mínima que fosse, para celebrar o próprio sofrimento.
era quando mabel ainda não havia descoberto os homens. sim, dormira com os seus, guardava a memória de como havia passado a vida com eles, mas não de seus corpos. por não saber, não os desnudara, tampouco a si mesma.
à exceção de um único, é preciso que se diga, e quando, muitos anos mais tarde o viu de relance, à rua num começo de longo fim de semana, sentiu saudade. com ele aprendera sobre sua própria geografia, tinha impresso nas próprias mãos a pele dele, suas linhas, o gosto.
não pôde se dirigir a ele, pois não saberia ser suave o bastante para não despertar o que já se fôra.
andou depressa para que ele não a visse, sentou-se à mesa na calçada e olhou-o de longe. era um homem belo. assim. a beleza ainda pode existir em aparições dessa ordem.
se lembrou de outra autora , em outro livro (sempre as letras), de algo que, ao ler, despertara nela uma raiva contida. sentira-se então enganada pela ambiguidade maneirista: então michelangelo não fazia senão esculpir corpos masculinos, fossem homens ou mulheres a representar. que engodo nos causa o desejo! agora, anos depois, sabia profundamente que michelangelo tinha razão: não é a luxúria que nos amarra a um corpo, é que só os homens tem corpos canônicos, mensuravelmente belos; os machos é que se prestam à admiração.
mulheres, ao contrário, são formas sempre por atingir, de uma matemática que cega. idealizações complexas da beleza, mulheres se revelam ao segundo olhar: conosco, não é da contemplação que se trata.
mabel se lembrou da linha lateral que partia dos ombros dele, descia pelo dorso e parava na cintura. de secretas expressões, a pele oliva quando ele retornava dos dias passados junto ao mar. quanto mais viviam juntos, mais ele a fascinava. foi ali, olhando-o a distância, que percebeu que jamais poderia dividir seus homens, jamais seria uma boa amante.
uma fronteira pode afinal ser intransponível.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

XXVII

entraram, ela à frente dele. ofereci para guardar os casacos. estou trêmula, minha voz ainda levemente falhada, meus olhos marejam. mouth into water, deus, nada mais enche minha boca d'água. estou cansada de um cansaço irremediável, que coisa, não sei como afastá-lo. perguntei de novo se ela desejava que eu guardasse os casacos. o dela, ocre, o dele, chumbo. um cheirava couro usado, o outro era desses tecidos novos que não distinguo mais quais sejam. eles pareciam jovens, mas não eram velhos, de algum modo eu o sabia. Nova York faz calor, está mais quente que por aqui, disse a ela. nenhum dos dois parecia triste por deixar a cidade naquele vôo curto. ela tinha no olhar um pouco de um tédio estudado, outro tanto de medo. ele não, tem os olhos escuros sob cílios espessos. impenetráveis, a um olhar rápido, mas não para ela, olhavam-se e para ambos eram olhos quase garras, um do outro.
pus as coisas em ordem para começar o vôo, vi-os novamente à minha frente, em silêncio. mas percebi seu braço deslizar pelas costas dela, ela imóvel, deixou a mão dele descansar na sua cintura. nenhum sinal de pressa, nenhuma urgência, que certamente ela tinha todo o tempo da vida para deixá-lo ali. quem sabe soubesse que ele voltaria ao seu corpo sempre, tantas vezes quisesse, muitas, quantas ele e ela desejassem. precisei me sentar. my mouth into water. bebi da minha pequena garrafa de agua adocicada, açucares artificiais simulando frutas. fechei os olhos, minha pele do rosto trêmula. minhas mãos, meus dedos que jamais portaram alianças. não ia demorar, no meio da tarde estaria em casa e ninguém à minha espera. gosto de dormir nesse vôo, é minha última chance de ter alguém velando meu sono de alguns minutos.
ontem li num jornal da cidade que os casamentos caem pela metade. o país parece se espantar com isso. com os motivos dos acasalamentos. eu não, nada estranho. não me casei por nenhuma daquelas razões. depois, mais tarde, não me separei por nenhuma das outras. é o que sou, uma mulher fora do prumo. anos a fio atrás dessa maquiagem, os saltos altos, o batom vermelho, decolagem atrás de decolagem e não engano a ninguém, se me olham um minuto a mais. o vôo vai acabar, peço aos dois pelo alto falante que não esqueçam seus casacos. perto de mim, ouço sua conversa, não posso evitar. ela contava a ele que podia viver muitas vidas, as boas e as más. ele lhe pede que conte como seriam as últimas. ela não pode dizer a ele, ele não suportaria. das boas, começa a contar o que ele sabe tão bem, tanto tempo ao lado dela, só assim se pousa a mão sobre a cintura da mulher ao seu lado, ele a conhece e não tem medo, ela parece não acreditar que isso seja assim, simples e possível. que ele já saiba há muito tempo: a vida da solidão, a vida em que apenas seria mãe de três crianças, a vida anônima atrás de uma mesa num escritório escuso num centro de cidade, em prédios de altas paredes feitas só de vidro. a vida dedicada a religiões arcaicas em que se lesse apenas o testamento antigo. dias e noites estudando escrituras de um deus vingativo que exigia marcar a sangue as portas onde vivem primogênitos. ele sussurra seu nome, esboça um sorriso de quem precisa aparar aquela loucura com os olhos, o riso, as mãos e diz a ela: cuido de você. ela nem tem dúvida, apenas sente medo como fosse desmaiar, continua a dizer a ele da vida em que passaria as tardes e o começo das manhãs enchendo páginas e páginas de minúsculos cadernos, confundindo lirismo com o desenvolvimento de suas próprias exclamações.
despediram-se de mim, ele saiu à frente, ela sorvia cada passo dele, suas costas, agora eram os olhos dela que pareciam donos daquele corpo dois passos adiante, mas jamais afastado. desviei meu olhar, não pude sorrir, mas pensei na boa sorte daquela aterrissagem.