quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

XXXVI

como há muitos anos - ele adorava as perguntas sobre os presentes, eram suas pistas -me perguntou o que eu desejaria ganhar no melhor natal da vida. eu só me lembro de desconversar em duas palavras, mais pra mim que pra ele. muito sofrido não recebê-lo. melhor não responder. véspera de natal, tarde de vento e sol, eu nem senti que vinha numa brisa, rolando em suaves nuvens de fumaça, num sopro de bom augúrio, asas de pássaro batendo e eu nem vejo. madrugada quente, me despedi até o dia seguinte. mas o amor é assim, envolve você num abraço, um centímetro de distância, suas e minhas mãos imóveis. a segunda vez em que acontecia assim, uma doação inteira, naqueles longos dias, semanas, anos. chegou, afinal. apertei os olhos, nessas horas sou só contemplação. mesmo que ele tivesse de ir agora, esse já teria sido o natal da vida - do que não pôde ser calculado, nem previsto, mas cujo alvo foi só boa sorte.

XXXV

tenho uma grande amiga, que não conheci na infância, e, como eu , nasceu sob o signo de virgem. de novo, como eu, sofre do mal de fazer perguntas infindáveis. isso certamente é razão de tantas afinidades, umas secretas, outras explícitas. ela tem o nome de alguém que nasceu no inverno, um desejo mal escondido de sua mãe de que a filha fosse uma rainha do gelo, ou, no mínimo, uma mulher pacificada com a espera, a placidez e a correção dos matrimônios. pobre senhora(a mãe): como quase todas de sua geração (a da mãe) delega às filhas a tarefa que não foram capazes elas próprias de cumprir com um sorriso nos lábios. mulheres pacificadas? com o que, ou como é possível, se sobram cicatrizes à menor manifestação de vida? pois bem, mais um filha rompida com o sonho da mãe. outra mulher com um desejo voraz do mundo. outra mulher vivendo uma saga em busca sabe-se lá de qual extâse. semanas atrás vi minha amiga, vejo-a sempre, só pra trocar o telefone todo dia no fim da tarde por uma conversa longa e ao vivo. chegara à melhor e óbvia das conclusões: não eram mais os homens o que procurava, era ela mesma; tampouco ela neles, mas no regozijamento que os namoros fugazes lhe causam. não são os homens - nem interessa que sejam ocidentais, muçulmanos ou introspectivos, atirados, exímios amantes ou criaturas exiladas - mas o próprio gosto do sexo. acabara de encontrar a primeira e mais crua das respostas, quase quatro décadas depois: o desejo não é do outro, é só de um lampejo de transcendência da própria origem. não é pouco: dá muita vontade de dançar músicas prediletas em comemoração à descoberta. afinal de contas, nem que seja para isso as desilusões dos anos sessenta nos serviram. mulheres são seres capazes de viver sós. a felicidade não é sua (delas) obrigação ou tarefa. é só gozo, como o de gastar os meses de verão à beira-mar. brisas.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

XXXIV

você tinha dois dias de idade. dois dias de vida!, meu deus, não parava de me assombrar com essa medida. o número mais improvável de que tinha consciência, a quantidade mais frágil que jamais pensara conhecer de tão perto. me lembro do ímpeto de escrever no espaço reservado ao nome da mãe, o da minha, não o meu próprio. seu pai tocou numa flauta transversal uma melodia que nunca me pareceu mais triste e era só o começo: pela estrada afora, eu vou bem sozinha.
você já tem todos os traços de uma menina, e fomos juntas à praia. gosto tanto quando andamos de mãos dadas, me divirto dando longas explicações pra tudo; te chamar por pequenos nomes que vão mudando. ontem na escola você dançava ao som de raul seixas: pode partir sem problema algum, boa viagem.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

XXXIII

quando chega dezembro mabel recobra sentidos ocultos. gosta de celebrações e rituais, os mais banais e os lacrimejantes, embora pense jamais merecê-los. a exceção é o verão chuvoso de dezembro, a véspera do fim do ano. era seu conforto redimido. em dezembro, dedica-se de novo aos horóscopos.

XXXII

ela não sabe o que fazer com os lamentos e as jaulas. a cidade insegura e você vive, somente. ela evitava guerras a qualquer custo. todo cotidiano acaba sepultando raivas, era por isso que, em temperaturas altas, se calava sempre . alguém te diz não de muitos jeitos, e você insiste, tenta, finge não ouvir, mas o grande não é um pano de fundo. nada a fazer além de seguir, e sozinha. já não se cala mais diante dos seus homens, pois agora sabe esquecer os filtros - dizer, dizer, dizer - mesmo que quase nada reste. ela corre todos os riscos da desproporção.
vê você, em silêncio, mexer nos dedos. não pode mais olhar à sua volta. do outro lado do corredor viu a dureza da face dela. você, uma síntese - resumo, no masculino. os gestos inteiros de um homem. afasta as maõs de pedinte dela - não, não toque minha pele. ela é de um humor intenso, aflita por partir numa despedida envergonhada. você, estrangeiro de si mesmo por um segundo. como um disco antigo que você desaprende a ouvir, mas aos primeiros acordes reconhece tudo: cadência, tonalidades, estalos. ela não repara que o jogo na tv acabou. tampouco, na violência velada. você pensa nos animais.

XXXI

mabel nunca cerra as cortinas duplas do seu quarto de dormir, não pode deixar o tempo e a luz lá fora por que senão imergiria num inverno imaginário e interminável. e sabia se conter, nesse seu desejo febril. aprendeu, nos verões a cada ano mais severos, o amor pela luminosidade da manhã. acorda sozinha tantas vezes no ano, a casa vazia de seus amores, e não tem outra saída - escreve uma escrita surda, ela e a luz alva são um dique para sua ansiedade.
quando fez trinta anos descobriu o próprio autismo. jamais prestou atenção nas regras dos outros, jamais ouviu-os com atenção. mabel não se arrepende, nada nela seria como é não fosse essa debilidade. vive a vida toda de interpretações mancas, as próprias. por isso mabel não joga fora seus sapatos antigos, gosta de olhá-los, testemunhas de suas hesitações: desarrumados, olham-na de volta, quase pasmos de terem - tantas, tantas vezes - trazido de volta à casa essa criatura que insiste em andar a passos fortes e deixar o coração bater na garganta.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

XXX

um dia ele lhe contou ter imaginado que as mulheres todas fossem como ela. difíceis. não precisavam - talvez, e entretanto iam ficar juntos. os dois têm sede, mas riem um pro outro, sorrisos que penetram pelos olhos dele e dela. não, ele lhe disse, aprendi que as mulheres não são todas como você. me davam algum alívio. você não. não posso, respondeu a ele. a falta inevitável que sente por toda a vida, quase nem acredita ter sido ele a reconhecê-la. um dia de cada vez, sobrevivente; horas todas elas sentindo a suavidade e a urgência. manhãs de segunda-feira, mergulhos há muito esperados no cotidiano, i will take a walk outside; cuidados minúsculos - como fossem pequenos torrões de açucar a desmanchar entre meus dedos.

XXIX

loomis recebeu uma carta vinda de muito longe. boas novas. notícias sinceras. desejou que F. dormisse em paz. o amor é um bálsamo, sobre todos os tipos de epiderme. as com cicatrizes, ainda mais. o amor sabe esperar que afinal chegue a lentidão.fique bem, F.