quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

XXXVI

como há muitos anos - ele adorava as perguntas sobre os presentes, eram suas pistas -me perguntou o que eu desejaria ganhar no melhor natal da vida. eu só me lembro de desconversar em duas palavras, mais pra mim que pra ele. muito sofrido não recebê-lo. melhor não responder. véspera de natal, tarde de vento e sol, eu nem senti que vinha numa brisa, rolando em suaves nuvens de fumaça, num sopro de bom augúrio, asas de pássaro batendo e eu nem vejo. madrugada quente, me despedi até o dia seguinte. mas o amor é assim, envolve você num abraço, um centímetro de distância, suas e minhas mãos imóveis. a segunda vez em que acontecia assim, uma doação inteira, naqueles longos dias, semanas, anos. chegou, afinal. apertei os olhos, nessas horas sou só contemplação. mesmo que ele tivesse de ir agora, esse já teria sido o natal da vida - do que não pôde ser calculado, nem previsto, mas cujo alvo foi só boa sorte.

XXXV

tenho uma grande amiga, que não conheci na infância, e, como eu , nasceu sob o signo de virgem. de novo, como eu, sofre do mal de fazer perguntas infindáveis. isso certamente é razão de tantas afinidades, umas secretas, outras explícitas. ela tem o nome de alguém que nasceu no inverno, um desejo mal escondido de sua mãe de que a filha fosse uma rainha do gelo, ou, no mínimo, uma mulher pacificada com a espera, a placidez e a correção dos matrimônios. pobre senhora(a mãe): como quase todas de sua geração (a da mãe) delega às filhas a tarefa que não foram capazes elas próprias de cumprir com um sorriso nos lábios. mulheres pacificadas? com o que, ou como é possível, se sobram cicatrizes à menor manifestação de vida? pois bem, mais um filha rompida com o sonho da mãe. outra mulher com um desejo voraz do mundo. outra mulher vivendo uma saga em busca sabe-se lá de qual extâse. semanas atrás vi minha amiga, vejo-a sempre, só pra trocar o telefone todo dia no fim da tarde por uma conversa longa e ao vivo. chegara à melhor e óbvia das conclusões: não eram mais os homens o que procurava, era ela mesma; tampouco ela neles, mas no regozijamento que os namoros fugazes lhe causam. não são os homens - nem interessa que sejam ocidentais, muçulmanos ou introspectivos, atirados, exímios amantes ou criaturas exiladas - mas o próprio gosto do sexo. acabara de encontrar a primeira e mais crua das respostas, quase quatro décadas depois: o desejo não é do outro, é só de um lampejo de transcendência da própria origem. não é pouco: dá muita vontade de dançar músicas prediletas em comemoração à descoberta. afinal de contas, nem que seja para isso as desilusões dos anos sessenta nos serviram. mulheres são seres capazes de viver sós. a felicidade não é sua (delas) obrigação ou tarefa. é só gozo, como o de gastar os meses de verão à beira-mar. brisas.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

XXXIV

você tinha dois dias de idade. dois dias de vida!, meu deus, não parava de me assombrar com essa medida. o número mais improvável de que tinha consciência, a quantidade mais frágil que jamais pensara conhecer de tão perto. me lembro do ímpeto de escrever no espaço reservado ao nome da mãe, o da minha, não o meu próprio. seu pai tocou numa flauta transversal uma melodia que nunca me pareceu mais triste e era só o começo: pela estrada afora, eu vou bem sozinha.
você já tem todos os traços de uma menina, e fomos juntas à praia. gosto tanto quando andamos de mãos dadas, me divirto dando longas explicações pra tudo; te chamar por pequenos nomes que vão mudando. ontem na escola você dançava ao som de raul seixas: pode partir sem problema algum, boa viagem.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

XXXIII

quando chega dezembro mabel recobra sentidos ocultos. gosta de celebrações e rituais, os mais banais e os lacrimejantes, embora pense jamais merecê-los. a exceção é o verão chuvoso de dezembro, a véspera do fim do ano. era seu conforto redimido. em dezembro, dedica-se de novo aos horóscopos.

XXXII

ela não sabe o que fazer com os lamentos e as jaulas. a cidade insegura e você vive, somente. ela evitava guerras a qualquer custo. todo cotidiano acaba sepultando raivas, era por isso que, em temperaturas altas, se calava sempre . alguém te diz não de muitos jeitos, e você insiste, tenta, finge não ouvir, mas o grande não é um pano de fundo. nada a fazer além de seguir, e sozinha. já não se cala mais diante dos seus homens, pois agora sabe esquecer os filtros - dizer, dizer, dizer - mesmo que quase nada reste. ela corre todos os riscos da desproporção.
vê você, em silêncio, mexer nos dedos. não pode mais olhar à sua volta. do outro lado do corredor viu a dureza da face dela. você, uma síntese - resumo, no masculino. os gestos inteiros de um homem. afasta as maõs de pedinte dela - não, não toque minha pele. ela é de um humor intenso, aflita por partir numa despedida envergonhada. você, estrangeiro de si mesmo por um segundo. como um disco antigo que você desaprende a ouvir, mas aos primeiros acordes reconhece tudo: cadência, tonalidades, estalos. ela não repara que o jogo na tv acabou. tampouco, na violência velada. você pensa nos animais.

XXXI

mabel nunca cerra as cortinas duplas do seu quarto de dormir, não pode deixar o tempo e a luz lá fora por que senão imergiria num inverno imaginário e interminável. e sabia se conter, nesse seu desejo febril. aprendeu, nos verões a cada ano mais severos, o amor pela luminosidade da manhã. acorda sozinha tantas vezes no ano, a casa vazia de seus amores, e não tem outra saída - escreve uma escrita surda, ela e a luz alva são um dique para sua ansiedade.
quando fez trinta anos descobriu o próprio autismo. jamais prestou atenção nas regras dos outros, jamais ouviu-os com atenção. mabel não se arrepende, nada nela seria como é não fosse essa debilidade. vive a vida toda de interpretações mancas, as próprias. por isso mabel não joga fora seus sapatos antigos, gosta de olhá-los, testemunhas de suas hesitações: desarrumados, olham-na de volta, quase pasmos de terem - tantas, tantas vezes - trazido de volta à casa essa criatura que insiste em andar a passos fortes e deixar o coração bater na garganta.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

XXX

um dia ele lhe contou ter imaginado que as mulheres todas fossem como ela. difíceis. não precisavam - talvez, e entretanto iam ficar juntos. os dois têm sede, mas riem um pro outro, sorrisos que penetram pelos olhos dele e dela. não, ele lhe disse, aprendi que as mulheres não são todas como você. me davam algum alívio. você não. não posso, respondeu a ele. a falta inevitável que sente por toda a vida, quase nem acredita ter sido ele a reconhecê-la. um dia de cada vez, sobrevivente; horas todas elas sentindo a suavidade e a urgência. manhãs de segunda-feira, mergulhos há muito esperados no cotidiano, i will take a walk outside; cuidados minúsculos - como fossem pequenos torrões de açucar a desmanchar entre meus dedos.

XXIX

loomis recebeu uma carta vinda de muito longe. boas novas. notícias sinceras. desejou que F. dormisse em paz. o amor é um bálsamo, sobre todos os tipos de epiderme. as com cicatrizes, ainda mais. o amor sabe esperar que afinal chegue a lentidão.fique bem, F.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

XXVIII

as mulheres sem vocação para serem amantes.
há muito mabel leu num livro de duras: "deve ter sido por muito tempo a soberana do seu desejo, a referência pessoal da sua emoção, da intensidade da ternura, da sombria e terrível profundeza da carne... desde que ele se apaixonou loucamente pelo seu corpo, a menina não sofria mais por tê-lo... como se também tivesse descoberto que esse corpo era afinal plausível, aceitável, tanto quanto outro qualquer".
não soube àquele momento o quanto eram palavras proféticas, uma condição em que ela então imaginava ajustar-se, mas logo se viu incapaz.
por mais um longo tempo mabel não pode evitar torturar-se por carregar aquele corpo, um corpo de mulher que silenciosamente pedia desculpas por existir. em tantas vezes olhou as pessoas e prescrutava-lhes o olhar para encontrar a condenação, mínima que fosse, para celebrar o próprio sofrimento.
era quando mabel ainda não havia descoberto os homens. sim, dormira com os seus, guardava a memória de como havia passado a vida com eles, mas não de seus corpos. por não saber, não os desnudara, tampouco a si mesma.
à exceção de um único, é preciso que se diga, e quando, muitos anos mais tarde o viu de relance, à rua num começo de longo fim de semana, sentiu saudade. com ele aprendera sobre sua própria geografia, tinha impresso nas próprias mãos a pele dele, suas linhas, o gosto.
não pôde se dirigir a ele, pois não saberia ser suave o bastante para não despertar o que já se fôra.
andou depressa para que ele não a visse, sentou-se à mesa na calçada e olhou-o de longe. era um homem belo. assim. a beleza ainda pode existir em aparições dessa ordem.
se lembrou de outra autora , em outro livro (sempre as letras), de algo que, ao ler, despertara nela uma raiva contida. sentira-se então enganada pela ambiguidade maneirista: então michelangelo não fazia senão esculpir corpos masculinos, fossem homens ou mulheres a representar. que engodo nos causa o desejo! agora, anos depois, sabia profundamente que michelangelo tinha razão: não é a luxúria que nos amarra a um corpo, é que só os homens tem corpos canônicos, mensuravelmente belos; os machos é que se prestam à admiração.
mulheres, ao contrário, são formas sempre por atingir, de uma matemática que cega. idealizações complexas da beleza, mulheres se revelam ao segundo olhar: conosco, não é da contemplação que se trata.
mabel se lembrou da linha lateral que partia dos ombros dele, descia pelo dorso e parava na cintura. de secretas expressões, a pele oliva quando ele retornava dos dias passados junto ao mar. quanto mais viviam juntos, mais ele a fascinava. foi ali, olhando-o a distância, que percebeu que jamais poderia dividir seus homens, jamais seria uma boa amante.
uma fronteira pode afinal ser intransponível.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

XXVII

entraram, ela à frente dele. ofereci para guardar os casacos. estou trêmula, minha voz ainda levemente falhada, meus olhos marejam. mouth into water, deus, nada mais enche minha boca d'água. estou cansada de um cansaço irremediável, que coisa, não sei como afastá-lo. perguntei de novo se ela desejava que eu guardasse os casacos. o dela, ocre, o dele, chumbo. um cheirava couro usado, o outro era desses tecidos novos que não distinguo mais quais sejam. eles pareciam jovens, mas não eram velhos, de algum modo eu o sabia. Nova York faz calor, está mais quente que por aqui, disse a ela. nenhum dos dois parecia triste por deixar a cidade naquele vôo curto. ela tinha no olhar um pouco de um tédio estudado, outro tanto de medo. ele não, tem os olhos escuros sob cílios espessos. impenetráveis, a um olhar rápido, mas não para ela, olhavam-se e para ambos eram olhos quase garras, um do outro.
pus as coisas em ordem para começar o vôo, vi-os novamente à minha frente, em silêncio. mas percebi seu braço deslizar pelas costas dela, ela imóvel, deixou a mão dele descansar na sua cintura. nenhum sinal de pressa, nenhuma urgência, que certamente ela tinha todo o tempo da vida para deixá-lo ali. quem sabe soubesse que ele voltaria ao seu corpo sempre, tantas vezes quisesse, muitas, quantas ele e ela desejassem. precisei me sentar. my mouth into water. bebi da minha pequena garrafa de agua adocicada, açucares artificiais simulando frutas. fechei os olhos, minha pele do rosto trêmula. minhas mãos, meus dedos que jamais portaram alianças. não ia demorar, no meio da tarde estaria em casa e ninguém à minha espera. gosto de dormir nesse vôo, é minha última chance de ter alguém velando meu sono de alguns minutos.
ontem li num jornal da cidade que os casamentos caem pela metade. o país parece se espantar com isso. com os motivos dos acasalamentos. eu não, nada estranho. não me casei por nenhuma daquelas razões. depois, mais tarde, não me separei por nenhuma das outras. é o que sou, uma mulher fora do prumo. anos a fio atrás dessa maquiagem, os saltos altos, o batom vermelho, decolagem atrás de decolagem e não engano a ninguém, se me olham um minuto a mais. o vôo vai acabar, peço aos dois pelo alto falante que não esqueçam seus casacos. perto de mim, ouço sua conversa, não posso evitar. ela contava a ele que podia viver muitas vidas, as boas e as más. ele lhe pede que conte como seriam as últimas. ela não pode dizer a ele, ele não suportaria. das boas, começa a contar o que ele sabe tão bem, tanto tempo ao lado dela, só assim se pousa a mão sobre a cintura da mulher ao seu lado, ele a conhece e não tem medo, ela parece não acreditar que isso seja assim, simples e possível. que ele já saiba há muito tempo: a vida da solidão, a vida em que apenas seria mãe de três crianças, a vida anônima atrás de uma mesa num escritório escuso num centro de cidade, em prédios de altas paredes feitas só de vidro. a vida dedicada a religiões arcaicas em que se lesse apenas o testamento antigo. dias e noites estudando escrituras de um deus vingativo que exigia marcar a sangue as portas onde vivem primogênitos. ele sussurra seu nome, esboça um sorriso de quem precisa aparar aquela loucura com os olhos, o riso, as mãos e diz a ela: cuido de você. ela nem tem dúvida, apenas sente medo como fosse desmaiar, continua a dizer a ele da vida em que passaria as tardes e o começo das manhãs enchendo páginas e páginas de minúsculos cadernos, confundindo lirismo com o desenvolvimento de suas próprias exclamações.
despediram-se de mim, ele saiu à frente, ela sorvia cada passo dele, suas costas, agora eram os olhos dela que pareciam donos daquele corpo dois passos adiante, mas jamais afastado. desviei meu olhar, não pude sorrir, mas pensei na boa sorte daquela aterrissagem.

domingo, 23 de setembro de 2007

XXVI


mabel lê horóscopos de jornal obssessivamente, junto com seu primeiro café, bem cedo. é um dentre seus muitos oráculos. ainda que ele risse da incoerência dela em acreditar naquelas quatro frases, naquela manhã leu em voz alta o que estava escrito para o signo dele:
"data estelar:o sol entrou em libra, começou a primavera aqui no hemisfério sul. você começa a caminhar hoje no tempo que antecede seu aniversário, seu inferno astral. o sol, no signo anterior ao seu, cumpre a promessa de criar mais equilíbrio em sua vida - te deixa contemplar belezas esquecidas e abandonar penas de amores passados. recolha suas armas, prefira descansar e despreocupar-se a continuar no fragor da luta. sua alma precisa recuar e sossegar minimamente, o que só se dará em longos momentos de ócio e silêncio".
despediu-se dele, desejando-lhe a visão das flores do cerrado.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

XXV

seu último caderno precisava ser dedicado a ele. ou chamar-se lar. não tomou nehuma das providências. escreveu-lhe uma carta com uma frase de granito, a que ele sonoramente respondeu: é certo que, sendo você a escrever, tinha de ser sobre o corpo, os corpos, um gozo. sim, devolveu-lhe, tudo era sobre isso, ela aprendera. o sexo ele próprio, o dinheiro, o amor desfeito, os casamentos. ah sim, claro, os casamentos. por muito tempo fotografava ao acaso noivas saindo de igrejas, ria consigo da terrível coincidência, era sempre em suas viagens de férias. agora se deparava com vestígios: da antena do carro à porta do prédio, pendiam uma flor e uma fita brancas. sim, mais cedo aquele carro levara os noivos. agora, ao crepúsculo, quem sabe se amavam, matavam vontades. quem sabe se amariam para sempre. quem sabe sofreriam por seus rituais quando arruínados.
ela sentiu um arrepio: era, por certo, um outro pedaço da vida, dele, dela, senão dos dois. apertou a mão dele enquanto caminhavam. era-lhe mais reconfortante espiar os vestígios do amor que testemunhar sua cerimônia. na luz branca da manhã seguinte, estrada do interior, cruzaram um rolls royce velho e seu motorista vestido a caráter - ia conduzir outra noiva. não, ela pensou, ele talvez não tenha se dado conta de que naquela viagem gravava na retina e em outros filmes, não numa fotografia, mais acasalamentos. sentiu sua mão, tão suave. pensou em dizer-lhe que suspeitava haver terminado, para ele, o alento das cerimônias. era mesmo o vento quente do amor vindouro, ainda ávido por entregar-se até o final, que soprava por ali. mas até então não foi capaz de fazê-lo. seu último caderno precisava ser dedicado a ele.

XXIV

lágrimas quentes, ausentes há algum tempo. olá, onde estavam? agradeceu pela trégua, recitou sua oração mais sincera, cinco vértebras deslocadas, era por isso então que doía tanto, e de mais de uma dor. nunca sente medo quando acolhe a solidão de volta na sua vida, seu solo é feito dela. mas dessa vez deseja tanto o direito de tudo viver junto, de se deixar ficar, de não precisar decidir por frases silenciosas. deseja apenas, com fervor.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

XXIII

um dia de manhã, olhando nova york à distância e do alto, mabel soube que era hora de voltar para casa, talvez olhar-se em outros espelhos. e, como dissera aquela velha senhora sempre a seu lado no jantar de gala ao qual obrigava-se a ir em cada começo de outono e primavera: be brave, my dear, be brave. it´s simply time to face the music.




William Morris, La belle Iseult
Oil on canvas,support: 718 x 502 mm
This is Morris's only completed oil painting.

terça-feira, 31 de julho de 2007

XXII

a. veio visitá-la.
a. é como molly: gosta e se assombra, definitivamente, com os homens. são amigos há muito tempo e ela gosta de dizer que ele é seu amigo mais feminino, pois eles têm as conversas mais açucaradas, as mais quentes, riem muito, nunca choram juntos, vigiam de perto o fino cinismo que de vez em quando se lhes acomete. a. tem, por natureza, a acidez masculina, não a perdeu quando superou a imensa timidez e resolveu amar seus próprios homens. então são conversas imbatíveis, molly sai de cada encontro revigorada. desta vez molly contou a ele o que vivia desde o fim do verão, não se viram muito nos últimos meses. enquanto o fazia, ele abria muito os imensos e impiedosos olhos azuis , dava sonoras risadas e dizia a molly que era bem feito, ela estava mordendo a própria língua, ela que repetia solenemente que certamente ia passar muito tempo sem se derramar para homem algum.
molly contava a a. da combinação simultânea de volúpia e aspereza, uma dissonância que a envolvia nesses dias, como um vestido de mangas longas numa noite fresca - a ela que não gastara um segundo da própria adolescência imaginando príncipes e maridos. e agora, esse reconhecimento, deve ser disso que falavam seus autores alemães prediletos.
molly fecha os olhos por um segundo quando o encontra. diz pra si que é para guardar muitos retratos dele na sua retina, retratos daquele mínimo instante em que aplaca sua vontade de tê-lo, mas não é verdade. o que molly quer, à soleira da porta que os separa, é abrandar seu arrebatamento, acostumar os olhos à penumbra do presente de secreta intensidade.
a., com a alma leonina que lhe pertence, não se deixa contaminar pela narrativa. disse simplesmente a molly que se contivesse em sua metafísica mal arrematada de sublimes, afinal um homem assim nada era além de uma concentração muito bem dosada de testosterona; que uma bem vinda ausência de mediações é tão somente uma garantia de felicidade nas manhãs frias ou escaldantes. que ia ser bom pra sempre, enquanto durasse sua sorte e espanto. molly bem o sabe.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

XXI

mabel loomis é uma alma oitocentista. adora ler Tocqueville, coitado, descrevendo em cores fortes as mulheres nas barricadas de fevereiro e junho de 1848, sem contudo compreender seu furor. mas Tocqueville entendeu algo de precioso: mesmo que em idéias escorregadias, desejos e teorias falsos, direitos subterrâneos, energias obscuras, uma mulher sempre aposta.
"Foi essa mistura de cúpidos desejos e de falsas teorias que, depois de desencadear a insurreição, tornou-a tão formidável. (...) Sob o impulso das necessidades e das paixões, muitos haviam acreditado nessas idéias. Tal obscura e errônea noção de direito, que se misturava à força bruta, comunicou a essa força uma energia, uma tenacidade e um poderio que por si só jamais teria tido. (...) essa insurreição terrível foi a sublevação de toda uma população contra outra. As mulheres nela tomaram parte tanto quanto os homens. Enquanto estes combatiam, elas preparavam e traziam as munições; e, quando afinal, tiveram de se render, foram as últimas a se decidir. Pode-se dizer que as mulheres trouxeram à luta as paixões da vida doméstica; contavam com a vitória para o bem-estar de seus maridos e para a educação de suas crianças. Amavam essa guerra como teriam amado uma loteria.” Alexis de Tocqueville, lembranças de 1848.

XX

uma tarde um encontro e uma atmosfera de sonho: você fala sem travo e não entende a si mesma, por que é capaz de tomar tanta liberdade assim, talvez por que estivesse com sede. no dia que se segue você pensa nas frases que disse, nos segredos que suavemente saíram da sua boca, tão bem guardados e agora - um sopro no ouvido de quem está do seu lado. uma contração nos músculos da sua barriga, você não teve medo de se deixar ver de tão perto? você escreve ficções, molly. você digita enigmas e agora cogita entregar-lhe suas chaves... não ensandeça, você é apenas uma mulherzinha, daquelas que ficam só no final. a felicidade, a infelicidade, tanto faz:cada uma, um estado imaginário e não obrigatório. não ensandeça, molly: quando não mais se trata de mitigar as dores, mas de mergulhar na intimidade a entrega é um abismo de onde se avista o oceano. você sabe voltar?

sábado, 28 de julho de 2007

XIX

ainda bem que mabel não se esquece de outras distantes noites de sábado - tão terríveis - , quando dormia num quarto com papel de parede desenhado de rosas muito pequenas, um disco do legião que ela tanto queria ouvir e não encontrava seus fones de ouvido naquela bolsa imensa em que supunha tê-los trazido. não, já não podia mais escutar música como gostava, e legião se ouve alto, ponto final. sentiu pena de si mesma, não pôde evitar uma tristeza doída. mesmo que visse o quanto era ridículo sentir-se aprisionada por tão pouco. quis pegar a estrada de volta pra sua casa e buscar seus fones. quem sabe ficasse. mas era noite, o caminho longo, ficou com a própria solidão e impotência, cantarolou baixinho a tal canção. neste sábado sentiu de novo a velha tristeza, mas pelo futuro. um misto de alívio -é que não mais dizia respeito a ela aquela incapacidade de doação - e de alerta. mabel bem sabe que a si cabe o contraponto daquela brutalidade fora do lugar, na história que começara alguns anos depois que compreendeu - os desenhos tão delicados nas paredes daquele quarto antigo eram tão somente a figura de uma opressão dissimulada. sua tristeza, a desta fria noite de lua quase cheia, era pela inevitabilidade do destino das pessoas a que ama.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

XVIII

nuvens, uma fumaça escassa e uma metrópole no alto da serra. meus anéis têm cicatrizes. histórias e horizonte entre essa mulher que sou eu e você, quem você se tornou, são uma coisa só: vida que delineia cicatrizes; são nossas fantasias de você e de mim. suas, minhas. acabou tão depressa que nem molhei a boca, não lambi os lábios. acho que foi por que você saiu cedo para viajar. o desejo espesso. de manhã a neblina que se abria quando o carro passava. uma fumaça escassa junta o verde, as casas, o asfalto da estrada. o cheiro, o cheiro, o caminho estreito que espreita a cidade imensa, sua blusa de malha branca deixada por aqui. você decifra mapas de ruas, uma luz tênue laminando o asfalto. eu desperto na casa que te viu sair ainda na penumbra. seus gestos sob meus pés descalços. eu fui, você me chamou, quase te ajudo a chegar: por pouco viajaríamos juntos. um chocolate e uma bala de menta no bolso do meu casaco. volantes desenham o diagrama da paisagem, paramos depois de errar, eu e você. hoje contei as pontes no mapa: é só cruzá-las, uma a uma - chegamos.

terça-feira, 24 de julho de 2007

XVII

há dias em que ela não suporta o pó acumulado nos livros e papéis. não são dias nem fáceis nem frequentes. jogou fora coisas muito antigas, molduras, fotos de bibliotecas na europa, bilhetes, agendas, arrancando algumas páginas com os retratos que precisa guardar.
mabel uma vez se dividira entre seus dois homens, gastou um ano inteiro nisso e o alívio só veio quando chegou um terceiro, um que só soube habitar a superfície dela. um encontro ligeiro, era alguém com quem apenas aprenderia a beber whisky. naqueles dias ela se despediu de um amor, depois do outro, e então cantou pra si mesma uma canção banal transformada em mantra: "aí na minha vida tudo mudou". ficou só, absolutamente só, depois dessa farra, claro. mas aprendeu ali a rir dos homens, tão respeitosos do seu próprio silêncio e poder. a bem da verdade, ela aprendeu a gostar de verdade dos homens, o gênero, com os acontecimentos daquele ano. viu-os pela primeira vez como iguais a si, o choro, o gozo, as ranhuras, a prepotência, a vaidade e o medo - tudo que sempre houve nela própria, em cores mais vibrantes neles que nela, achava. soube afinal que não era da sentença deles do que precisava para viver, era de sua doçura e carne.
em seus tons de cinza e amarelo, mabel é uma mulher monótona, farras não são para ela.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

XVI

molly aprendia aos poucos a olhar e, olhando, enganar a contemplação. depois contava a quem era de direito que imaginava a posse. costas à distância. quando o dia terminava, uma frase seca era capaz, sozinha, de instalar o espanto e o sublime do azul escuro daquela água. mergulhava sem dó. de vez em quando, não precisava ceder à urgência, deixava-a descansar - virar nuvem, um véu suave, que o envolvia lentamente sem qualquer palavra. ondas que, sabe, o alcançam. senão agora, na vida à frente. molly constrói armadilhas para o tempo: disfarça num olhar de paisagem o desejo todo do mundo que sente. copo de vidro em alta temperatura. chá pelando, o lábio de baixo queimando no vapor. pensava longas frases antes de adormecer e guardava os detalhes mais insignificantes nas mãos e braços à sua volta. talvez não soubesse ou não pudesse jamais dizer do quanto era, mas era muito.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

XV

o mês de julho cheira a óleo de cravo esfregado sobre a superfície das unhas. atravessava seus dias estendendo-os, vendo o sol desaparecer e deixando gelar o café na xícara, enquanto conversava longas histórias com amigos uns antigos outros nem tanto mas igualmente importantes. o odor de cravo enchia-lhe o pulmão assim que começava a contar as semanas desse mês que, ainda bem, é feito de cinco semanas, do dia mais vazio do ano na cidade, e dos encontros que deixavam vivas suas amizades. podia se dar ao imenso luxo de andar a esmo, esquecer o relógio na cabeceira da cama e refinar seu cotidiano - eram mesmo férias luxuosas. gostava de se demorar fazendo as unhas dos pés, andar de chinelos para não estragá-las. nunca deixara de se impressionar com o requinte do gesto que faz as unhas brilharem sem esmalte, desde quando sua mãe a ensinara a esperar a manicure vir, toda sexta-feira, duas da tarde. depois eram as noites do fim de semana que não precisava terminar, segundas-feiras sem aula de manhã. mas do que mabel estava impregnada era do cheiro de cravo que atravessara sua adolescência - do óleo em pequenos vidros, da delicadeza com que foram aprendendo, elas e as amigas, a conversar assuntos espinhosos, levianos e divertidos, tudo a um só tempo.
agora, décadas depois, os aromas acres se misturam ao frescor do falso inverno. nossas conversas femininas, a cada vez mais sinceras. as segundas-feiras são mais ansiosas, a gente menos. e entretanto as despedidas são as mesmas. tome conta de você, não sofra tanto quando o desejo terminar, não ritualize a tirania - até o próximo meio do ano.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

XIV

por meses não disse a ele que o tinha esperado, que algo nela era irremediavelmente dele. foi quando se sentiu olhada num raio x. não deu meia volta, decidiu que deveria mesmo dizer o que doía tanto nela - o horóscopo do sábado tinha dito para dividir o peso que a oprimia por dentro - horóscopos num jornal, ela os respeitava, sabe lá quando seria a próxima hecatombe. horas mais tarde viu-se tomada por aquela proximidade cirúrgica que lhe roubava o prazer, mas não eram olhos dele , eram os dela própria - os mais aterrorizantes - olhando para dentro da tarde sufocante de calor, de uma rudeza que ela afinal gostava. até que contou: começou dizendo do gosto, que se lembrava; depois provou de novo aquele gosto amargo. por causa do que restava sem dizer ficou outra vez com vontade de chorar, agora não, molly, por favor, esse vai se tornar o altar das lágrimas. até que falou vagarosamente, um fio comprido que ia puxando do estômago, às avessas. tudo fugiu à sua volta, exceto sua própria tristeza, que dessa nunca ia se livrar; exceto se lembrar de agradecer pelos dois, uma estranha boa sorte. para ela, desde sempre, o que é muito bom nasce do nada, do seu próprio negativo.

XIII

mabel se assustava muito e em pequenas doses. todo dia, pra ser mais exata. do que mais sentia medo era de não dar conta de atravessar as horas. por vezes, as mais prosaicas tarefas do cotidiano - levantar-se da cama, ir trabalhar, conversar as conversas automatizadas do trabalho, pegar o caminho de volta para casa, entrar na garagem e dizer, graças a deus, dei conta - exigia-lhe tanto controlar seu medo, que não sobrava sumo para extrair das palavras. assim, o silêncio tornava-se compulsório.

mabel ficava feliz em doses concentradas. em dias insuspeitos. sentia uma alegria tão profunda que lhe tomava os poros, as horas sob o chuveiro no inverno, o sabor das frutas que devora sempre. poucas vezes na vida se viu assim, entorpecida de cotidiano - vida de ouvir música com o corpo todo, deixar a memória de pedaços da sua história te visitar todas as tardes, devolver seu sorriso mais sincero às pessoas que reconhece pela rua - era uma entrega tão inteira que não sobrava fôlego para chegar às palavras. o silêncio só podia ser cúmplice.

quinta-feira, 14 de junho de 2007

XII

uma vez um amor acabara. ela se dera conta quando olhou com inveja um casal se despedindo na calçada, sete da manhã, um beijo suave mas intenso antes de cada um tomar seus ritmo e rumo e trabalho. nem se lembrava mais da última vez em que dera um beijo assim, rápido, e entretanto ansioso pela volta, pelo fim do dia. por que o amor chegara ao fim, perdera o direito à leveza, ao desejo mal contido e habitual de se ver de novo, dividir as histórias ridículas dos alunos, dos chefes, da empregada, da luminária nova, a escola dos filhos, sua tpm, as verduras do jantar. o amor se despedira tardiamente, mas se fora. ela se dava conta.
agora o via novamente, era capaz de reconhecê-lo, como fosse alguém que a esperasse de volta no aeroporto. trocaram um sorriso tímido, os olhos empapuçados de sono, e ela sabia que nunca mais precisaria invejar as despedidas dos casais nas manhãs geladas, aqueles dois à sua frente no tráfego da rua ainda vazia, as mãos custando a se separar. sabia que ele chegara mais uma vez, sentia tão profundamente sua presença que achou que talvez devesse agradecer a mágica. foi o que fez, o amor é como o mar. deve ser respeitado a qualquer preço, pois revolto, tormentoso ou calmaria, o amor é só imensidão e horizonte.
por isso o abraçou, e agradeceu-lhe por ter vindo para viver com ela mais uma vez, agradeceu-lhe silenciosamente pelo sorriso com que a acolhera na volta da viagem. disse-lhe para ficar, a vida podia ser imensa, e a sua era a segunda casa dele.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

XI

molly não tem muitos amigos mas se orgulha de todos que tem, pois eles a fazem sorrir, dar longos abraços, e como dizia sua mãe, "você desliza repetidamente as mãos pelas costas de quem gosta quando abraça", ao que mabel respondia a cada vez: é um afago que esquenta, mãe. nada; molly o faz para retribuir o mesmo tanto que eles, sim, aquecem-lhe o coração. é assim , por exemplo, com c.f., o amigo a quem hoje deve mandar um recado - e até parece que ele mora em katmandu, e não a quatro ou cinco cidades de onde vive mabel - dizendo: que lindo, c.f.

X

quem começava os motins no século XVIII era, com bastante frequência, as mulheres. mas não adianta procurar nessa fúria intenções políticas manifestas e articuladas. se assim fosse, ela perderia seu sangue em ebulição. o motim de uma mulher é quase sempre um motim da fome. mabel estava cansada de saber que isso sequer requeria um alto grau de organização. foi olhar as fotos das esculturas de bourgeois, que isso lhe fazia esquecer das horas.

quarta-feira, 23 de maio de 2007

IX

abriu os olhos no escuro, protegida pelos números alaranjados do relógio. era seu quarto, sua vida e nada fora do lugar, nenhum engano. terminara de ler uma história desconcertante, e sentiu o vento, a delicadeza e medo, esses ingredientes noturnos das perguntas que vinham tomar sua vida. não, por favor, não me façam partir daqui- só preciso de um espelho convexo, e não consigo dormir. as janelas da sua casa têm frestas que não contém o vento. às vezes ele sopra suave, noutras ganha velocidade e a faz levantar mais cedo, ainda mais. não faz mais diferença se ela dorme ou não, têm sido assim nas noites que passa só. molly se lembrou da frase no livro que dizia que um amor é destino. pensou que um amor verdadeiro deixa cicatrizes - nas costas, nos móveis, os livros que chegam por mãos insuspeitas, uma rudeza amarga e o chão que foge sob os pés. chorou algumas vezes durante o dia um choro que não era por si ou por eles dois, afinal de contas. ou era, irremediavelmente?

domingo, 20 de maio de 2007

VIII

mabel recebera a carta de c.f., adorava quando ele escrevia. concordava com ele sobre o ímpeto dos homens, também com o que ele não escrevera sobre a timidez dada como certa das mulheres. pedra e seda, a duração improvável que esgarça antes do atrito terminar.
esta linha nitidamente demarcada, mais intuída que descrita por c.f., era a do decoro, a aparência de pureza que tanto protege as figuras convencionais de um casal ou de um par à espera do futuro. ou daqueles longos casos de amor, cheios de abreviaturas secretas, mensageiros aliciados de confiança, excursões prediletas, ausências que são terríveis e datas clandestinas memoráveis.
crédula do amor que parece alucinação, mesmo a si mabel parece excessivamente sentimental, banal, e entretanto respeita por demais a liberdade que a expressão dos sentimentos aquosos lhe concede - a uma mulher é inevitável, os homens disfarçam melhor esse impulso absurdo para dramatizar toda emoção, essa predileção por gestos efusivos.
ela chama a si própria e a outras manifestações da vida feminina tantas vezes mulherzinha pois gosta do tamanho do cotidiano que se deixa compreender somente no diminutivo. exatamente ali onde a inocência sempre foi algo relativamente elástico.

sexta-feira, 18 de maio de 2007

VII

molly amanheceu sabendo que o veria, esse era um daqueles dias em que ia se sentir muito triste e precisaria esquecer que a comunicação humana existe. telefones são inúteis, nunca mais ia usá-los. mas era sempre nesses dias que acontecia, ela não podia evitar e ele também não, mesmo que nenhum dos dois quisesse assim ou soubesse por que acontecia desse jeito. assistiu às aulas em francês para matar a saudade do acento, pensou se ia mudar de cidade e esperou que ele respondesse. era companheiros de solidão, era só isso. ele acertava os dias, ela se apoiava nele como numa promessa. ele sentia seu cheiro, ainda que a milhas de distância, era isso o que lhe bastava. imaginou-o sozinho como sempre, quis estar lá para dar boa noite e o mandar para casa. ele não entende alemão direito, não vai compreender o que o segurança ou o porteiro disserem quando o mandarem fechar o laboratório, terminar seu serão, deixar o andar, tirar seu uniforme. molly imaginou seus olhos grandes e perdidos. sentiu saudade. e estava só.

VI

mabel se sentia à vontade na classe média do século XXI, considerada a maioria dos seus aspectos. não inteiramente, claro, que esse advérbio não frequenta seus relatos, à exceção talvez daqueles em que se entrega, sua ansiedade imoderada, sua sensualidade áspera. ao contrário de suas certezas sociais, mabel tinha certezas morais que cediam à pressão exercida por sua experiência erótica. era uma mulher totalmente convencional: monótona, monocórdica. por mais sincera que fosse sua pose independente, pressupondo que isso exista - uma pose sincera -, não tinha impulso algum para desafiar a vida que aprendera na casa de seus pais. mas suspeitava: que o mundo era imenso, que em outros lugares havia neve ou árvores altíssimas; que havia, sob uma luz brilhante, uma paisagem de areia em outros tantos. tinha dez anos quando tornou-se uma mulher sem lugar; não desejava outra vida, desejava um outro espaço, sempre outro, para mais adiante, sempre lá, onde pudesse (suspeitava) viver a mesma vida.

V

décimo-segundo andar, avenida do parque. por trás do brise-soleil verde (ou azul)-piscina, a luz mudou da madrugada pro dia ensolarado. molly se pergunta ainda por quantas vezes virá ali, ela que gosta de obstáculos e de não dormir uma noite inteira. uma vez se casara, e no caminho para a cerimônia todas as ruas estavam fechadas, feito paisagem de sonho. molly nem se preocupou, tão desarmada estava, e tão feliz pelo imenso bouquet de flores que receberia mais tarde. cada desaviso tem um preço, e ela viu-se muito tempo depois sozinha de uma solidão palpável, daquelas que você só suporta colocando uma música alta no rádio do carro enquanto dirige por longos quilômetros em linha reta, imaginando frases inteiras pra nunca dizer a quem não te ama mais, mas você insiste e sabe bem por quê. um dia molly contou a uma professora, a quem não via muitas vezes num ano, mas sim, qundo se encontravam eram encontros repletos de amizade, que gostava de se casar decerto porque era uma mulher conservadora. ao que a professora respondeu: não, mabel, um casamento é também uma utopia.

quinta-feira, 10 de maio de 2007

IV

havia uma escada sempre iluminada, fosse dia ou noite, num prédio à esquerda da rua em que subiam a cada vez que ela ia, ressabiada, acompanhá-lo até a casa. devia a ele a espera, o silêncio, devia.
ele deixou-a rapidamente, a cabeça entre os ombros, ela dizendo palavras para dentro de si enquanto devorava a imagem das suas costas se afastando. sentia saudade dele logo um segundo depois de cada vez que o via à distância. queria escrever-lhe cartas tão delicadas em que dissesse que sim, gostava nele dos menores cuidados, andar de mãos dadas.
não, não me deixe à deriva que assim posso ir embora, e sem que você note - morreríamos os dois dessa vez, não há duas primaveras num mesmo ano.
mabel loomis, a que escreve diários, aprendera a sofrer e sabia que ainda o mais atroz dos sofrimentos terminava. algo nela dizia que era felicidade,não importava o quanto aquilo lhe enganasse com seus mergulhos doloridos, suas faces de assombro. havia uma escada, o lance ascendente, um corrimão de ferro pintado em branco; o telhado solto na beira, um amor incondicional, ela o sabia. podia esperar milênios.

terça-feira, 8 de maio de 2007

III

molly se espanta com facilidade. mas nunca tanto quanto descobriu que mulheres são o sintoma do mundo e por isso os consultórios de psicanálise estão repletos de nós. molly comparece religiosamente às suas sessões vespertinas, vai e volta andando vagarosamente, odeia que haja um elevador à saída, ela gostaria de ter que caminhar por um caminho longo e horizontal, tão logo se despedisse de seu médico. com ele molly aprendeu a respeitar o inconsciente: gosta de chamá-lo médico não pela perspectiva da cura, mas por que o que se passou consigo mesma foi uma intervenção cirúrgica, algo perto de uma cesariana, um bisturi atravessando sua pele e desenhando mapas como cicatrizes do que é ser uma mulher. uma vez, ao terminar um livro que escrevia, molly agradeceu ao seu psicanalista: com minha gratidão mais íntima, por insistir em que aquilo de que não se pode falar, é preciso dizê-lo.

segunda-feira, 7 de maio de 2007

II

chegou o dia em que experimentaria começar e terminar por canções que falavam de corações devastados e filmes açucarados.
ela sempre soube que não viveria sem, por isso não lhe causava qualquer assombro a íntima delicadeza.
por vezes, doía uma dor aguda quando o olhava, mas isso era o terrível na beleza, pensava molly, ou quem sabe sua própria intensidade mal-contida.
tanta proximidade ressoava por longos segundos em algum lugar sem identificação no seu corpo.
não, não podia olhá-lo sem ferir a si mesma com seus olhos ardendo... seu olhar reverso, de novo sobre si, a cada vez que o punha em movimento.
queria.
protect me from what i want.
provar um amor eterno.
provou um amor eterno.

molly e seus amores

ela tinha três diários, um intimíssimo que lia no escuro do quarto, um a que se dedicava toda segunda-feira à tarde e o terceiro, de capa preta, em que anotava tudo, tudo, hora a hora dos dias, desenhava com tinta nanquim de muitos tons, e depois escolhia os detalhes que narrava às amigas com quem saía religiosamente pra jantar no início das noites de domingo. foi se dividindo entre eles, em cada um escrevia um tipo de assunto, até o dia em que percebeu que era uma personagem em busca de um nome. molly era o seu nome verdadeiro mas ela queria ter sido chamada por outros sons. assim parecia que ela era título de romance barato - desses de banca de revista, de amores oitocentistas, em que tem sempre um cara e uma menina derretidos um com o outro, que custam dois reais e se chamam júlia, sabrina, rebeca, bianca, e que você lia escondido da sua mãe quando tinha onze anos de idade.
certa vez molly ouviu a seguinte conversa na mesa ao lado - ela jamais evita escutar as falas alheias:
- não sei o que você viu nela. ela é uma mulher comum.
- ela tem o olhar de desejo.nada comum.
molly se lembrou de quantas vezes na vida lamentou não despertar nos homens todos um olhar de fogo. sabia que nunca os tinha deixado ver o que lhe faltava, seu despudor; ela própria tão aflita por alguém que a achasse pronta, leve e suave.