terça-feira, 31 de julho de 2007

XXII

a. veio visitá-la.
a. é como molly: gosta e se assombra, definitivamente, com os homens. são amigos há muito tempo e ela gosta de dizer que ele é seu amigo mais feminino, pois eles têm as conversas mais açucaradas, as mais quentes, riem muito, nunca choram juntos, vigiam de perto o fino cinismo que de vez em quando se lhes acomete. a. tem, por natureza, a acidez masculina, não a perdeu quando superou a imensa timidez e resolveu amar seus próprios homens. então são conversas imbatíveis, molly sai de cada encontro revigorada. desta vez molly contou a ele o que vivia desde o fim do verão, não se viram muito nos últimos meses. enquanto o fazia, ele abria muito os imensos e impiedosos olhos azuis , dava sonoras risadas e dizia a molly que era bem feito, ela estava mordendo a própria língua, ela que repetia solenemente que certamente ia passar muito tempo sem se derramar para homem algum.
molly contava a a. da combinação simultânea de volúpia e aspereza, uma dissonância que a envolvia nesses dias, como um vestido de mangas longas numa noite fresca - a ela que não gastara um segundo da própria adolescência imaginando príncipes e maridos. e agora, esse reconhecimento, deve ser disso que falavam seus autores alemães prediletos.
molly fecha os olhos por um segundo quando o encontra. diz pra si que é para guardar muitos retratos dele na sua retina, retratos daquele mínimo instante em que aplaca sua vontade de tê-lo, mas não é verdade. o que molly quer, à soleira da porta que os separa, é abrandar seu arrebatamento, acostumar os olhos à penumbra do presente de secreta intensidade.
a., com a alma leonina que lhe pertence, não se deixa contaminar pela narrativa. disse simplesmente a molly que se contivesse em sua metafísica mal arrematada de sublimes, afinal um homem assim nada era além de uma concentração muito bem dosada de testosterona; que uma bem vinda ausência de mediações é tão somente uma garantia de felicidade nas manhãs frias ou escaldantes. que ia ser bom pra sempre, enquanto durasse sua sorte e espanto. molly bem o sabe.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

XXI

mabel loomis é uma alma oitocentista. adora ler Tocqueville, coitado, descrevendo em cores fortes as mulheres nas barricadas de fevereiro e junho de 1848, sem contudo compreender seu furor. mas Tocqueville entendeu algo de precioso: mesmo que em idéias escorregadias, desejos e teorias falsos, direitos subterrâneos, energias obscuras, uma mulher sempre aposta.
"Foi essa mistura de cúpidos desejos e de falsas teorias que, depois de desencadear a insurreição, tornou-a tão formidável. (...) Sob o impulso das necessidades e das paixões, muitos haviam acreditado nessas idéias. Tal obscura e errônea noção de direito, que se misturava à força bruta, comunicou a essa força uma energia, uma tenacidade e um poderio que por si só jamais teria tido. (...) essa insurreição terrível foi a sublevação de toda uma população contra outra. As mulheres nela tomaram parte tanto quanto os homens. Enquanto estes combatiam, elas preparavam e traziam as munições; e, quando afinal, tiveram de se render, foram as últimas a se decidir. Pode-se dizer que as mulheres trouxeram à luta as paixões da vida doméstica; contavam com a vitória para o bem-estar de seus maridos e para a educação de suas crianças. Amavam essa guerra como teriam amado uma loteria.” Alexis de Tocqueville, lembranças de 1848.

XX

uma tarde um encontro e uma atmosfera de sonho: você fala sem travo e não entende a si mesma, por que é capaz de tomar tanta liberdade assim, talvez por que estivesse com sede. no dia que se segue você pensa nas frases que disse, nos segredos que suavemente saíram da sua boca, tão bem guardados e agora - um sopro no ouvido de quem está do seu lado. uma contração nos músculos da sua barriga, você não teve medo de se deixar ver de tão perto? você escreve ficções, molly. você digita enigmas e agora cogita entregar-lhe suas chaves... não ensandeça, você é apenas uma mulherzinha, daquelas que ficam só no final. a felicidade, a infelicidade, tanto faz:cada uma, um estado imaginário e não obrigatório. não ensandeça, molly: quando não mais se trata de mitigar as dores, mas de mergulhar na intimidade a entrega é um abismo de onde se avista o oceano. você sabe voltar?

sábado, 28 de julho de 2007

XIX

ainda bem que mabel não se esquece de outras distantes noites de sábado - tão terríveis - , quando dormia num quarto com papel de parede desenhado de rosas muito pequenas, um disco do legião que ela tanto queria ouvir e não encontrava seus fones de ouvido naquela bolsa imensa em que supunha tê-los trazido. não, já não podia mais escutar música como gostava, e legião se ouve alto, ponto final. sentiu pena de si mesma, não pôde evitar uma tristeza doída. mesmo que visse o quanto era ridículo sentir-se aprisionada por tão pouco. quis pegar a estrada de volta pra sua casa e buscar seus fones. quem sabe ficasse. mas era noite, o caminho longo, ficou com a própria solidão e impotência, cantarolou baixinho a tal canção. neste sábado sentiu de novo a velha tristeza, mas pelo futuro. um misto de alívio -é que não mais dizia respeito a ela aquela incapacidade de doação - e de alerta. mabel bem sabe que a si cabe o contraponto daquela brutalidade fora do lugar, na história que começara alguns anos depois que compreendeu - os desenhos tão delicados nas paredes daquele quarto antigo eram tão somente a figura de uma opressão dissimulada. sua tristeza, a desta fria noite de lua quase cheia, era pela inevitabilidade do destino das pessoas a que ama.

quinta-feira, 26 de julho de 2007

XVIII

nuvens, uma fumaça escassa e uma metrópole no alto da serra. meus anéis têm cicatrizes. histórias e horizonte entre essa mulher que sou eu e você, quem você se tornou, são uma coisa só: vida que delineia cicatrizes; são nossas fantasias de você e de mim. suas, minhas. acabou tão depressa que nem molhei a boca, não lambi os lábios. acho que foi por que você saiu cedo para viajar. o desejo espesso. de manhã a neblina que se abria quando o carro passava. uma fumaça escassa junta o verde, as casas, o asfalto da estrada. o cheiro, o cheiro, o caminho estreito que espreita a cidade imensa, sua blusa de malha branca deixada por aqui. você decifra mapas de ruas, uma luz tênue laminando o asfalto. eu desperto na casa que te viu sair ainda na penumbra. seus gestos sob meus pés descalços. eu fui, você me chamou, quase te ajudo a chegar: por pouco viajaríamos juntos. um chocolate e uma bala de menta no bolso do meu casaco. volantes desenham o diagrama da paisagem, paramos depois de errar, eu e você. hoje contei as pontes no mapa: é só cruzá-las, uma a uma - chegamos.

terça-feira, 24 de julho de 2007

XVII

há dias em que ela não suporta o pó acumulado nos livros e papéis. não são dias nem fáceis nem frequentes. jogou fora coisas muito antigas, molduras, fotos de bibliotecas na europa, bilhetes, agendas, arrancando algumas páginas com os retratos que precisa guardar.
mabel uma vez se dividira entre seus dois homens, gastou um ano inteiro nisso e o alívio só veio quando chegou um terceiro, um que só soube habitar a superfície dela. um encontro ligeiro, era alguém com quem apenas aprenderia a beber whisky. naqueles dias ela se despediu de um amor, depois do outro, e então cantou pra si mesma uma canção banal transformada em mantra: "aí na minha vida tudo mudou". ficou só, absolutamente só, depois dessa farra, claro. mas aprendeu ali a rir dos homens, tão respeitosos do seu próprio silêncio e poder. a bem da verdade, ela aprendeu a gostar de verdade dos homens, o gênero, com os acontecimentos daquele ano. viu-os pela primeira vez como iguais a si, o choro, o gozo, as ranhuras, a prepotência, a vaidade e o medo - tudo que sempre houve nela própria, em cores mais vibrantes neles que nela, achava. soube afinal que não era da sentença deles do que precisava para viver, era de sua doçura e carne.
em seus tons de cinza e amarelo, mabel é uma mulher monótona, farras não são para ela.

segunda-feira, 23 de julho de 2007

XVI

molly aprendia aos poucos a olhar e, olhando, enganar a contemplação. depois contava a quem era de direito que imaginava a posse. costas à distância. quando o dia terminava, uma frase seca era capaz, sozinha, de instalar o espanto e o sublime do azul escuro daquela água. mergulhava sem dó. de vez em quando, não precisava ceder à urgência, deixava-a descansar - virar nuvem, um véu suave, que o envolvia lentamente sem qualquer palavra. ondas que, sabe, o alcançam. senão agora, na vida à frente. molly constrói armadilhas para o tempo: disfarça num olhar de paisagem o desejo todo do mundo que sente. copo de vidro em alta temperatura. chá pelando, o lábio de baixo queimando no vapor. pensava longas frases antes de adormecer e guardava os detalhes mais insignificantes nas mãos e braços à sua volta. talvez não soubesse ou não pudesse jamais dizer do quanto era, mas era muito.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

XV

o mês de julho cheira a óleo de cravo esfregado sobre a superfície das unhas. atravessava seus dias estendendo-os, vendo o sol desaparecer e deixando gelar o café na xícara, enquanto conversava longas histórias com amigos uns antigos outros nem tanto mas igualmente importantes. o odor de cravo enchia-lhe o pulmão assim que começava a contar as semanas desse mês que, ainda bem, é feito de cinco semanas, do dia mais vazio do ano na cidade, e dos encontros que deixavam vivas suas amizades. podia se dar ao imenso luxo de andar a esmo, esquecer o relógio na cabeceira da cama e refinar seu cotidiano - eram mesmo férias luxuosas. gostava de se demorar fazendo as unhas dos pés, andar de chinelos para não estragá-las. nunca deixara de se impressionar com o requinte do gesto que faz as unhas brilharem sem esmalte, desde quando sua mãe a ensinara a esperar a manicure vir, toda sexta-feira, duas da tarde. depois eram as noites do fim de semana que não precisava terminar, segundas-feiras sem aula de manhã. mas do que mabel estava impregnada era do cheiro de cravo que atravessara sua adolescência - do óleo em pequenos vidros, da delicadeza com que foram aprendendo, elas e as amigas, a conversar assuntos espinhosos, levianos e divertidos, tudo a um só tempo.
agora, décadas depois, os aromas acres se misturam ao frescor do falso inverno. nossas conversas femininas, a cada vez mais sinceras. as segundas-feiras são mais ansiosas, a gente menos. e entretanto as despedidas são as mesmas. tome conta de você, não sofra tanto quando o desejo terminar, não ritualize a tirania - até o próximo meio do ano.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

XIV

por meses não disse a ele que o tinha esperado, que algo nela era irremediavelmente dele. foi quando se sentiu olhada num raio x. não deu meia volta, decidiu que deveria mesmo dizer o que doía tanto nela - o horóscopo do sábado tinha dito para dividir o peso que a oprimia por dentro - horóscopos num jornal, ela os respeitava, sabe lá quando seria a próxima hecatombe. horas mais tarde viu-se tomada por aquela proximidade cirúrgica que lhe roubava o prazer, mas não eram olhos dele , eram os dela própria - os mais aterrorizantes - olhando para dentro da tarde sufocante de calor, de uma rudeza que ela afinal gostava. até que contou: começou dizendo do gosto, que se lembrava; depois provou de novo aquele gosto amargo. por causa do que restava sem dizer ficou outra vez com vontade de chorar, agora não, molly, por favor, esse vai se tornar o altar das lágrimas. até que falou vagarosamente, um fio comprido que ia puxando do estômago, às avessas. tudo fugiu à sua volta, exceto sua própria tristeza, que dessa nunca ia se livrar; exceto se lembrar de agradecer pelos dois, uma estranha boa sorte. para ela, desde sempre, o que é muito bom nasce do nada, do seu próprio negativo.

XIII

mabel se assustava muito e em pequenas doses. todo dia, pra ser mais exata. do que mais sentia medo era de não dar conta de atravessar as horas. por vezes, as mais prosaicas tarefas do cotidiano - levantar-se da cama, ir trabalhar, conversar as conversas automatizadas do trabalho, pegar o caminho de volta para casa, entrar na garagem e dizer, graças a deus, dei conta - exigia-lhe tanto controlar seu medo, que não sobrava sumo para extrair das palavras. assim, o silêncio tornava-se compulsório.

mabel ficava feliz em doses concentradas. em dias insuspeitos. sentia uma alegria tão profunda que lhe tomava os poros, as horas sob o chuveiro no inverno, o sabor das frutas que devora sempre. poucas vezes na vida se viu assim, entorpecida de cotidiano - vida de ouvir música com o corpo todo, deixar a memória de pedaços da sua história te visitar todas as tardes, devolver seu sorriso mais sincero às pessoas que reconhece pela rua - era uma entrega tão inteira que não sobrava fôlego para chegar às palavras. o silêncio só podia ser cúmplice.