quinta-feira, 25 de outubro de 2007

XXVII

entraram, ela à frente dele. ofereci para guardar os casacos. estou trêmula, minha voz ainda levemente falhada, meus olhos marejam. mouth into water, deus, nada mais enche minha boca d'água. estou cansada de um cansaço irremediável, que coisa, não sei como afastá-lo. perguntei de novo se ela desejava que eu guardasse os casacos. o dela, ocre, o dele, chumbo. um cheirava couro usado, o outro era desses tecidos novos que não distinguo mais quais sejam. eles pareciam jovens, mas não eram velhos, de algum modo eu o sabia. Nova York faz calor, está mais quente que por aqui, disse a ela. nenhum dos dois parecia triste por deixar a cidade naquele vôo curto. ela tinha no olhar um pouco de um tédio estudado, outro tanto de medo. ele não, tem os olhos escuros sob cílios espessos. impenetráveis, a um olhar rápido, mas não para ela, olhavam-se e para ambos eram olhos quase garras, um do outro.
pus as coisas em ordem para começar o vôo, vi-os novamente à minha frente, em silêncio. mas percebi seu braço deslizar pelas costas dela, ela imóvel, deixou a mão dele descansar na sua cintura. nenhum sinal de pressa, nenhuma urgência, que certamente ela tinha todo o tempo da vida para deixá-lo ali. quem sabe soubesse que ele voltaria ao seu corpo sempre, tantas vezes quisesse, muitas, quantas ele e ela desejassem. precisei me sentar. my mouth into water. bebi da minha pequena garrafa de agua adocicada, açucares artificiais simulando frutas. fechei os olhos, minha pele do rosto trêmula. minhas mãos, meus dedos que jamais portaram alianças. não ia demorar, no meio da tarde estaria em casa e ninguém à minha espera. gosto de dormir nesse vôo, é minha última chance de ter alguém velando meu sono de alguns minutos.
ontem li num jornal da cidade que os casamentos caem pela metade. o país parece se espantar com isso. com os motivos dos acasalamentos. eu não, nada estranho. não me casei por nenhuma daquelas razões. depois, mais tarde, não me separei por nenhuma das outras. é o que sou, uma mulher fora do prumo. anos a fio atrás dessa maquiagem, os saltos altos, o batom vermelho, decolagem atrás de decolagem e não engano a ninguém, se me olham um minuto a mais. o vôo vai acabar, peço aos dois pelo alto falante que não esqueçam seus casacos. perto de mim, ouço sua conversa, não posso evitar. ela contava a ele que podia viver muitas vidas, as boas e as más. ele lhe pede que conte como seriam as últimas. ela não pode dizer a ele, ele não suportaria. das boas, começa a contar o que ele sabe tão bem, tanto tempo ao lado dela, só assim se pousa a mão sobre a cintura da mulher ao seu lado, ele a conhece e não tem medo, ela parece não acreditar que isso seja assim, simples e possível. que ele já saiba há muito tempo: a vida da solidão, a vida em que apenas seria mãe de três crianças, a vida anônima atrás de uma mesa num escritório escuso num centro de cidade, em prédios de altas paredes feitas só de vidro. a vida dedicada a religiões arcaicas em que se lesse apenas o testamento antigo. dias e noites estudando escrituras de um deus vingativo que exigia marcar a sangue as portas onde vivem primogênitos. ele sussurra seu nome, esboça um sorriso de quem precisa aparar aquela loucura com os olhos, o riso, as mãos e diz a ela: cuido de você. ela nem tem dúvida, apenas sente medo como fosse desmaiar, continua a dizer a ele da vida em que passaria as tardes e o começo das manhãs enchendo páginas e páginas de minúsculos cadernos, confundindo lirismo com o desenvolvimento de suas próprias exclamações.
despediram-se de mim, ele saiu à frente, ela sorvia cada passo dele, suas costas, agora eram os olhos dela que pareciam donos daquele corpo dois passos adiante, mas jamais afastado. desviei meu olhar, não pude sorrir, mas pensei na boa sorte daquela aterrissagem.

Um comentário:

OCSB disse...

ainda bem que a irremediabilidade dos cansaços irremediáveis é apenas uma pequena rasteira que passamos em nós mesmos. um dia a gente se cura disso - sabemos também. às vezes, até já se curou, mas aí nem damos bola para a lembrança. saudades do seu amigo otavio.